quarta-feira, 23 de maio de 2007

:: Estorvo - Chico Buarque (1991) ::

Homem só, errante, errado, pendurado na vida como um ponteiro de relógio que não assinala presente. Até podia ser outro qualquer não fosse este homem sem nome narrado em memória, em passos divergentes. Estória sublimemente escrita por outro homem que até podia ser outro, noutro homem qualquer, não se chamasse Chico Buarque da Holanda (sim, também escreve como ninguém). Não se arrastasse na História com obras de um enquadramento único. Não fossem seus produtos artísticos testemunhos de humanidade que a salvam da condenação de ser mais uma espécie qualquer, essa humanidade qualquer que às vezes até muito pouco disso tem, vivendo em actos sem fecho de cortina, como selvagens.Homem só, a confessar memória a cada página, a prender cobardias sem sentido na intenção dos próximos passos. É o estorvo. Da mãe, da irmã, do cunhado, do seu amigo, da ex-mulher, da ex-casa, um prisioneiro da ex-vida, uma sobra. É um solitário que conta a sua estória, em primeira pessoa, sem ter mais nenhuma que não a estória falhada que conta. E saberia muito bem como não existir não tivesse uma estória para contar. É um homem.
A escrita de Chico Buarque é droga pesada, propaganda de vida, um absoluto prazer sem efeitos secundários malignos. Estorvo, primeira aventura do artista brasileiro nos andaimes do romance literário, devia trazer na contracapa um aviso em letras garrafais: Buarque é um vício difícil de largar. Não comece a ler. Estorvo é equilibrado, não cai. E continua por aí nas prateleiras de livros, sem avisos prévios – é para vermos como anda a Protecção Civil! Depois admiram-se se nos arde o peito, se há paixão a mais nas calçadas boémias. Se todos os romances ‘estorvassem’ assim...O estilo de Chico promete, na estória do homem perdido, romances futuros, mal sabendo ainda que estaria programada a perfeição de Budapeste (2004).Estava.
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Sílvio Mendes2006

http://www.rascunho.net/critica.asp?id=776

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